Cuiabá, 26 de Abril de 2024

SAÚDE E BEM ESTAR Sexta-feira, 01 de Setembro de 2017, 10:48 - A | A

01 de Setembro de 2017, 10h:48 - A | A

SAÚDE E BEM ESTAR / OVERDOSE

Farmácias tomam conta de Cuiabá

No livre comércio e competitividade entre estabelecimentos, os consumidores devem ficar atentos a promoções que podem colocar em risco a saúde

Aline Almeida / Revista Única



Quem anda pelas principais vias de Cuiabá fica com a sensação de que há uma farmácia em cada esquina. E é quase isso. Com menos de sete quilômetros de extensão, a Avenida Historiador Rubens de Mendonça, conhecida como Avenida do CPA, em Cuiabá, tem 20 desses estabelecimentos. O ápice da overdose é um trecho de 200 metros, entre o viaduto do CPA e a Rua da Cereja, onde estão concentradas seis lojas. 

 

Há no segmento uma preferência pelos pontos de esquina. É o fenômeno das cornershops, uma estratégia para ter maior visibilidade e atrair os consumidores que ziguezagueiam em busca de ofertas e descontos. Nessa disputa, entram também as garrafas de chá e café, as cadeiras de espera, estacionamento e até brinquedoteca.


Em Mato Grosso ao todo são 1,8 mil farmácias e drogarias espalhadas pelos 141 municípios, uma média de 12,8 estabelecimentos por cidade. Com 285 farmácias e drogarias, Cuiabá tem um estabelecimento para cada 1,9 mil habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que essa relação seja de uma para 8 mil habitantes. Em duas décadas, o número de farmácias cresceu 45% na cidade.


Cuiabá ocupa a nona colocação no ranking das capitais brasileiras em crescimento de número de farmácias. Nos últimos anos, a febre se alastrou para municípios do interior. Mato Grosso conta, atualmente, com 1.812 farmácias e drogarias comerciais, o que significa um salto de 45% em cinco anos (dados do Conselho Regional de Farmácia do Estado, o CRF-MT, indicam que em 2013 existiam 1249 estabelecimentos). Ou seja: uma farmácia para cada 1,6 mil habitantes, proporção próxima da capital. 

 

Alexandre Henrique Magalhães, presidente do Conselho Regional de Farmácia, diz que ao mesmo tempo que pode parecer um número elevado de farmácias é preciso analisar também a distribuição geográfica desses estabelecimentos. Pois existem localizações que podem estar desprovidas ou com acesso difícil e do outro lado podemos ter localizações com estabelecimentos em número excessivo.

 

“Nos últimos cinco anos o número aumentou em 600, saindo de 1.200 para 1.800. É um número grande, só que se dividir por município dá uma média de 12,8 farmácias cada um. Seria razoável, mas há cidades com números concentrados e com números reduzidos, essa quantidade não significa que elas estão bem distribuídas”, diz Alexandre.

 

Alexandre explica que a distribuição das farmácias depende de muitos fatores, entre eles o tamanho da cidade, número de habitantes e procura. O presidente do Conselho diz ainda que o que se tem observado é que tem crescimento quando tem aumento da procura por medicamentos em razão da pouca oferta na rede pública. Isso, segundo ele, ocorre quando a rede pública tem de ser mais falha no sentido de ter o medicamento à disposição ou quando os profissionais prescrevem medicamentos que não estão na rede, por isso a procura pelas farmácias é maior. 

 

“A farmácia é o meio de acesso mais fácil da população ao tratamento de saúde. Qualquer cidade ou qualquer bairro tem uma farmácia e nem sempre tem uma unidade de saúde. Na farmácia, por lei, o farmacêutico tem que estar presente; se não estiver, o cidadão pode denunciar. Para isso ele tem que se identificar como farmacêutico através de um crachá, tem que ter documento na parede com nome e número de registro. Se ele não estiver com crachá, o cidadão pode pedir a cédula de identidade dele”, afirma.

 

Na farmácia, segundo o presidente do Conselho Regional de Farmácia, o cidadão tem um profissional para atender, não precisa agendar e nem esperar meses. O farmacêutico tem o dever de identificar o problema de saúde do paciente e se for algo que extrapole a atuação tem a obrigação de encaminhar ao serviço de saúde. 

 

“O aumento da quantidade de farmácias é reflexo da demanda por qualidade de vida, de estar bem consigo mesmo. É uma demanda dos tempos modernos e, além disso, o Brasil está envelhecendo”, avalia o presidente da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto. 

 

Há, no entanto, quem considere o boom de estabelecimentos farmacêuticos sintoma do descontrole de uma complexa engrenagem envolvendo laboratórios, médicos e pacientes, o que leva ao excesso de medicalização da vida.

 

Autor do livro Voltando ao Normal (Versal Editores, lançado no Brasil em 2016), o renomado psiquiatra norte-americano Allen Frances afirma que milhões de pessoas saudáveis – incluindo crianças – estão tomando remédios sem necessidade. Ao contrário do que muitos pensam, a culpa, segundo ele, não é do nosso atual ritmo alucinante de vida, mas da "inflação diagnóstica" induzida pelos fabricantes de pílulas.

 

– A vida sempre foi difícil. O crescimento de transtornos mentais não ocorre porque a vida está mais estressante ou porque estamos adoecendo mais. Está relacionado com o interesse comercial dos laboratórios, o desorganizado sistema médico e alguns critérios de diagnóstico mais frouxos – diz Frances, em entrevista por e-mail ao jornal “Zero Hora”.


Na avaliação da psicóloga Helivalda Pedroza Bastos, a dependência de pílulas foi gerada, ao longo dos anos, a partir de ações deliberadas dos laboratórios para disseminar a "cultura do remédio". A pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) diz que as pessoas passaram a confiar mais nos comprimidos do que na própria resiliência. Uma das consequências seria o uso abusivo de medicamentos, como a Ritalina, utilizada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), sobretudo em crianças e adolescentes. Em 10 anos, o consumo do medicamento saltou 775% no país.

 

Pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o médico Flavio Danni Fuchs, autor do livro Farmacologia Clínica e Terapêutica, afirma que o ser humano é movido pelo "instinto de cura". Em busca de alívio, lota as farmácias, que são vistas como uma espécie de "paraíso", onde há solução para quase tudo:

– As pessoas são suscetíveis a imaginar que os remédios são mais eficazes do que realmente são. Muitas coisas têm uma resposta independentemente do tratamento. É o famoso efeito placebo. Por isso, costumo dizer para meus pacientes: não faça nem da doença nem do remédio o centro da sua vida.

 

Alexandre

 


Consumidor deve ficar atento

Alexandre Henrique Magalhães confirma que o consumidor deve ficar atento. Ele frisa que o dever do farmacêutico é saber se realmente a pessoa precisa de um medicamento e se realmente é aquele. “Não é porque ele chega pedindo um medicamento que a gente tem que somente entregar, temos realmente que saber se precisa do medicamento, assim a gente evita a automedicação que muitas vezes leva à morte”, diz.

 

Alexandre diz que a farmácia comercializa, aliás, todo estabelecimento comercializa, assim como clínicas e hospitais. Mas é um estabelecimento de serviço de saúde que comercializa produtos e serviços. “Vimos que tem se tornado comércio desregrado com a prática abusiva de alguns estabelecimentos meio que empurrando algumas coisas, o que não deveria ser feito”, afirma.

 

O presidente do CRF cita como exemplo algumas propagandas de promoções de medicamentos que são agressivas e colocam em risco a saúde do povo. “Propagandas tipo ‘compre uma caixa de medicamento e leve duas’; isso está incentivando a automedicação. Esta parte da comercialização é ruim. Mas quando um paciente vai a uma farmácia e é atendido por um farmacêutico, e é bem orientado, não há problema algum. Não há problema ter a parte de cosmético. Mas se eu chego lá e eles dizem que se eu comprar um medicamento eu levo dois, esse ‘dois’ que estou levando prejudica a minha saúde em potencial”.

 

É muito comum andarmos pelas ruas da capital e vermos faixas em frente a farmácias de medicamentos como Diclofenaco e Viagra, a preços abaixo de R$ 5, além de promoções “compre e leve outro”. Alexandre ressalta que a empresa pratica o preço que quiser, ela não pode praticar acima do preço máximo de venda, alguns medicamentos possuem preço máximo de venda, abaixo desse valor pratica-se o que quiser. 

 

Mas a questão de incentivar a compra que é um problema, o “compre um ganhe dois” e propagandas que induzam ao consumo. “Vemos faixa de medicamento para impotência sexual que precisam de receita e as pessoas vendem de maneira ostensiva, e isso pode levar à morte”.

 

Falando em farmácia, o presidente diz que ainda precisamos avançar muito. “A farmácia, há tempos, era um estabelecimento de saúde muito rígido. Com a evolução isso se perdeu e com o tempo passou a ser um comércio que vendia de tudo. Hoje a farmácia não é um estabelecimento comercial, mas sim de prestação de saúde. Hoje é necessário que se tenha um farmacêutico e que não esteja ali apenas para entregar medicamento”, afirma.  

 

Críticas à legislação

Vários Conselhos de Farmácia no país defendem leis de zoneamento urbano, estabelecendo distância mínima entre as lojas, o que poderia evitar a alta concentração que estimula a automedicação. Houve, recentemente, a tentativa de incluir essa exigência em uma legislação federal, mas não vingou. Entidades como a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) argumentam que a medida fere princípios constitucionais como os da “livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica”. 


O modelo de negócio inspirado nas drugstores norte-americanas é alvo de críticas. O médico José Ruben Bonfim, coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), defende que as farmácias e drogarias deixem de ser estabelecimentos comerciais, que também vendem produtos de higiene e beleza, e sejam apenas estabelecimentos de saúde. É o que determina a Lei 13.021, sancionada em 2014, mas ainda pendente de regularização. Membro do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Bonfim considera fundamental o fim do enquadramento de medicamentos como isentos de prescrição médica. Essa distinção, segundo ele, “só interessa ao mercado” e leva as pessoas a acreditarem que os produtos com essa classificação não causam danos à saúde. 
“É um problema muito sério. Você entra numa farmácia e é só estender a mão e sair enchendo uma sacola de venenos. Um remédio, mesmo autorizado pela Anvisa, pode ser um veneno. Não tem cabimento se vender anti-inflamatórios do jeito que se vende no país. Muito tardiamente passamos a controlar os antibióticos. As tragédias que estamos vivendo são tragédias ocultas”, disse. 


Autora do livro Tarja Preta, a jornalista Marcia Kedouk lembra que “medicamentos salvam e prolongam vidas e não faz sentido ser contra eles”: “A questão é o excesso. Muitos dos nossos males não são tratáveis com comprimidos e a medicalização cria uma ditadura da felicidade. Todo mundo precisa estar sempre bem e feliz. Acontece que sentimos dor e tristeza, ansiedade, medo e desânimo. Faz parte da natureza humana e nem sempre requer um remédio”. 

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