Cuiabá, 26 de Abril de 2024

ARTIGOS/UNICANEWS Segunda-feira, 10 de Julho de 2017, 12:12 - A | A

10 de Julho de 2017, 12h:12 - A | A

ARTIGOS/UNICANEWS / EDUARDO MAHON

Sombra de Gente

Eduardo Mahon é advogado e escritor.



Eduardo Mahon

 

A sombra despegou-se do homem. Mas manteve a forma. Chapéu de palha, calça de sarja e sandálias de couro. Mancava como o homem mancava. A sombra não tinha ser próprio. Tudo lembrava o homem da qual era nascida. Sou gêmea – achava. Encheu-se da vida de sombra, entretanto. Partiu rumo ao desconhecido, caminhando enquanto havia luz na estrada. Ninguém se dava conta de uma sombra sem dono. Ninguém humano, claro. Cachorro latia, rosnava, gania até. Não adiantava nada. O que havia ali para morder? 

 

A sombra, de vez em quando, cansava-se e sentava sob uma árvore, misturando-se com outras sombras. Como se confraternizasse com o farfalhar das folhas ao vento. Mas não. Mantinha-se só. Solteira num mundo de sombras casadas. Não havia calculado o passo: sombra não tem voz. Vida mais besta a de sombra, ralhou. À míngua de corpo, vagava sem sono, sem sede, sem fome. A sombra era um aleijão de gente. Nem nome tenho – lamentava-se. Estava presa à forma original: chapéu, calça de sarja e sandálias de couro.

 

Depois que descansou, foi andando num canavial, onde havia uma multidão de sombras magras. Nenhuma delas quis ser amiga. Percebeu, então, que só poderia se apegar com outras sombras da mesma espécie, sombra de homem. Com bicho e planta, não tem camaradagem. Quem sabe até convenço alguma sombra fêmea fugir comigo?, foi como se animou. Esperou o que tinha de esperar.

 

No final de semana, tinha festa do povo que colhia a cana. Sob a luz de candeeiro, a sombra viu outras sombras, umas mais longas, outras mais curtas, na maioria sombras animadas, algumas cambaleantes de tanta cachaça. Foi se chegando pelo caminho escuro, iluminado de lua cheia. Arrumou-se como podia: chapéu de palha, calça de sarja e sandálias de couro. Na portaria, a sombra do porteiro encarou-a com uma cara sombria: onde pensa que vai? Vou entrar, ora. Entrar sozinha? Negativo. Nessa festa, sombra só entra acompanhada. Murchou ali mesmo. De nada resolvia polêmica. Sair no tapa com a sombra espichada pela chama do querosene? Brigar de que jeito? Não tinha como pegar em faca. Nem berro. O tiro até vaza, considerou.

 

Decepcionada, a sombra do homem voltou pra trás. Atravessou a mesma picada e, de longe, acompanhou a festa de sombras animadas. No dia seguinte, decidiu voltar para o dono. Iria pedir desculpas para colar-se de novo no homem de chapéu de palha, calça de sarja e sandálias de couro. Procurou no alojamento dos trabalhadores. Oitava cama, estreita e dura. Era onde dormia Floriano, o homem sem sombra. A cama estava vazia. Deve estar na lida – pensou a sombra. Ledo engano. Depois de três dias sozinho, o colhedor de cana não aguentou a zombaria. Pulou no riacho sem saber nadar. Morte certa.

 

E agora? –quis saber a sombra? O que faço sem Floriano? Tentou ocupar o espaço, a cama, o armário. Não pôde. Na cama, outra sombra mais jovem projetava-se no chão: sombra de Firmino, muito prazer! Ninguém ali precisava de uma sombra a mais. Precisa e não precisa – concluiu ao sair do dormitório. Sem outro jeito, resolveu se matar. E, por acaso, sombra morre? – questionou-se. Lembrou que até defunto tem sombra.

 

Em todo o caso, achou por bem seguir o caminho de Floriano: jogar-se no rio e, quem sabe, afogar-se como ele. Assim procedeu. Não espalhou uma gota de água. Nunca pensara nisso, mas sombra não se molha de verdade. Dentro do rio, encontrou peixe de tudo o que é tipo, resto de tarrafa, um pneu velho, galho com lodo, mas não se afogou. Se não respiro, não tem como morrer sem ar – concluiu. A sombra saiu da água, tão seca como entrou. Ficou na beira do rio, sombreando sem propósito. Até que lembrou: debaixo do sol do meio-dia, não faz sombra. Ficou ali durante toda a manhã como que se bronzeando. Foi desaparecendo na terra, encurtando-se devagar, encolhendo. Ao meio-dia em ponto, descoagulou-se por completo na coroa do sol.

 

Eduardo Mahon é advogado e escritor.

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